domingo, dezembro 30, 2018

ESPERA

Pela tarde...
Espero, com o olhar perturbado, vergado ao brilho do néon que vive da energia do meu telemóvel.
O azul que se vê por entre as linhas não insinua o frio que dizem que a cor transmite mas o inverno, enérgico, já derramou o seu manto em cima do meu meditar.
E por aqui, em vez do calor desejado, tudo continua morno, a escorrer para o gelado.
Quem disse que o azul é frio?

Respiro fundo!
Olhem para mim mas não me chamem ocioso ou outros adjectivos menos dignos. 
Estou mal-humorado e impertinente, eu sei, mas chamem-me apenas um homem que expôs os seus desejos à voragem dos desígnios.
Até que no meu recanto, a minha alma adormece, nas não tranquila. Dorme para sonhar o momento exacto em que Ela regressa para o meu lado, num momento mais do que esperado, para despertar todos os meus sentidos.

Aqui, sim! Talvez perceba, finalmente, o Universo inteiro.

E espero!
Uma espera que viaja pela hora avançada da noite...
Será que alguém me ouve aqui?
Será que existem maneiras de ouvir alguém aqui?
Estarei cá tão alto?
Parece improvável.
Os que vivem lá em baixo não sabem da agonia dos sentidos de quem anda por aqui.

Percorro todas as curvas da noite.
Lá estão todos os segredos por contar e todas palavras à espera de serem ditas e os poemas por declamar.

Acordo agora. Perdi a minha vez?
– O que precisas de dizer que só possa ser dito aqui?
– Preciso de encontrar o meu amor.


Amanhã voltarei de novo à espera e lembrar-me-ei de hoje, de ontem, de todos os dias.

quarta-feira, dezembro 26, 2018

TU

Estou a ouvir uma musiquinha dos meus tempos de rapazola (Susie Q,  dos Credence Clearwater Revival) que é muito, muito fraquinha.
Diz o cantor que gosta da forma como Susie Q fala, anda, ri, etc. e também diz que ela sabe que ele gosta da forma como ela fala, anda, ri, etc.

Pois bem:

Também eu gosto da forma como ris, como falas, como choras...
E também quero que saibas que gosto da forma como falas, como choras...
Mas, por cima disso tudo, estou apaixonado pela grande mulher que és. Quem, como tu, se emociona assim; quem, como tu, suporta o que suportaste; quem como tu desenterrou forças para suplantar todas as tuas adversidades e, no fim, deixa fugir as tais lágrimas teimosas por via do amor que eu te confiro, tem de ser uma grande mulher.

Sim:
Tu és uma Senhora com a alma enorme!
E a mim foi-me concedido o privilégio de te ter aqui, bem dentro de mim, intensa e - como dizer isto -. poder escrever-te estas e outras, muitas outras linhas, por exemplo.


Tanta coisa que tenho cá dentro, mas... não me apetece esticar mais estas linhas.

ABANDONO

Que relato aqui?

Uma toalha de linho
com rosas vermelhas
debruadas

cobrindo a mesa posta
com gestos de alma
e o destino lento
da paixão pelas palavras.

Feita de música
e palavras,
tem no centro
um alabastro
queimando perfumes
a figos
muito aromáticos.

Por baixo o mar
e num dos topos
o desejo sensual
aos domingos do senhor.

No outro
o nascer ao sul
descobrindo audaz
o sol na alma.

Em frente
acastanhando o olhar
uma cor apaixonada

Em redor
as árvores altas
e os troncos velhos
vestidos de líquenes
refúgio cúmplice
da passarada.

É só apenas a ilusão
porque não há outro tempo

O tempo em que não haviam
ervas bravas.

Não fora este nevoeiro
correndo nas páginas
da alma entorpecida ...

teria feito ouvir a minha voz

(Sentemo-nos e sintamos
os cheiros que fazem
parte da memória e na mesa
aninhemos as nossas almas).

Mas sozinho comi!
Só,

só, só.

EXISTÊNCIA

EXISTÊNCIA 

«Decerto cada mundo possui o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a todos com o seu Método, a sua escura capa, a sua agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa, o grande PENSO, LOGO EXISTO. Portanto todos nós habitantes dos mundos, às janelas dos nossos casarões, além nos Saturnos ou aqui na nossa Terrícula, constantemente perfazemos um acto sacrossanto que nos penetra e nos funde - que é sentirmos no Pensamento o núcleo comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento dentro da Consciência, a Unidade do Universo»
Eça de Queirós

Meu Amor:

Há um momento sacrossanto - estivesse eu aqui neste lugar ou noutro mundo
qualquer - que também me penetra e funde esta surpresa com a vontade imensa de peregrinar até junto de ti, serena e bela.

É por isso que essa tão filosófica afirmação para mim se torna na dúvida que afinal põe em causa todas as certezas: JURO QUE PENSO, MUITO! MAS SE NÃO SOUBESSE DE TI, SABERIA
EXISTIR?

A tudo o que te modela junta também este acto de Unidade. 


Quero restaurar o bater cardíaco normal.

VIAGEM

«O viajante entra na estalagem... Chiam os pardais no olmo da praça, diante da varanda aberta de vasos de sardinheiras, e um canário amarelo canta na sua gaiola, eriçando as penazitas da garganta. Um gato dorme ao sol, dentro do quarto, no canto da pequena esteira de esparto e uma criança pequena mija gloriosamente, desafiadoramente, da varanda.»
(Camilo José Cela, in Vagabundo ao Serviço de Espanha).

Com a simplicidade da narrativa de Cela, também haverei de narrar no meu sonho, a minha viagem. Está decidido. Fiz as malas. É um dizer, porque malas, neste sonho, não as tenho. Mesmo que as tivesse, deixá-las-ia sempre no seu lugar, ao pó invisível do alto do guarda-fato que é um outro dizer, também.
Mas façamos de conta que as fiz.
Arrumei-as na memória e parti. Já iam palmilhadas as léguas iniciais quando, impelido por uma irresistível vontade, olhei para trás. Lá, na grande cidade, continuava agarrado às letras, óculos no nariz, procurando deseperadamente os sinais orientadores dos rumos que insinuam as viagens. 
Mas venci a cidade. Bem desperto, aproveitei o sono e, sorrateiro, para não acordar o corpo, parti.
Que me atrai na minha viagem?
Que sei?
A arte de vagabundear em busca dos regaços que são bons para repousar o amor? 
Talvez!
Talvez na viagem encontre uma praça dos amores de mil encantos, olhares a prometer beijos de outros tempos e cantos enfeitiçados.
É disso que preciso?
É isso que me sufoca.
É neste desdobramento que viajo. Assim, posso ir até onde quiser.
E quero ir apenas a um único sítio. Até ti.
Os caminhos abrem-se à minha frente, por entre fendas, desvios e cruzamentos. Poderei discernir qual o percurso real? Até certo ponto tenho noção da minha etapa. Depois, confiarei no meu instinto, perdido, pesquisando-te na cidade grande.
Saberei o caminho do regresso? Dizem que regressar é fácil quando não se parte. Sei que farei o caminho do retorno mas ficarei a levitar na viagem, até que a cidade real me acorde com os olhos. Mas agora ainda viajo. Shiu! Não me acordem.

Nem sequer espreitem até onde me leva este meu vagabundear.