quarta-feira, dezembro 26, 2018

VIAGEM

«O viajante entra na estalagem... Chiam os pardais no olmo da praça, diante da varanda aberta de vasos de sardinheiras, e um canário amarelo canta na sua gaiola, eriçando as penazitas da garganta. Um gato dorme ao sol, dentro do quarto, no canto da pequena esteira de esparto e uma criança pequena mija gloriosamente, desafiadoramente, da varanda.»
(Camilo José Cela, in Vagabundo ao Serviço de Espanha).

Com a simplicidade da narrativa de Cela, também haverei de narrar no meu sonho, a minha viagem. Está decidido. Fiz as malas. É um dizer, porque malas, neste sonho, não as tenho. Mesmo que as tivesse, deixá-las-ia sempre no seu lugar, ao pó invisível do alto do guarda-fato que é um outro dizer, também.
Mas façamos de conta que as fiz.
Arrumei-as na memória e parti. Já iam palmilhadas as léguas iniciais quando, impelido por uma irresistível vontade, olhei para trás. Lá, na grande cidade, continuava agarrado às letras, óculos no nariz, procurando deseperadamente os sinais orientadores dos rumos que insinuam as viagens. 
Mas venci a cidade. Bem desperto, aproveitei o sono e, sorrateiro, para não acordar o corpo, parti.
Que me atrai na minha viagem?
Que sei?
A arte de vagabundear em busca dos regaços que são bons para repousar o amor? 
Talvez!
Talvez na viagem encontre uma praça dos amores de mil encantos, olhares a prometer beijos de outros tempos e cantos enfeitiçados.
É disso que preciso?
É isso que me sufoca.
É neste desdobramento que viajo. Assim, posso ir até onde quiser.
E quero ir apenas a um único sítio. Até ti.
Os caminhos abrem-se à minha frente, por entre fendas, desvios e cruzamentos. Poderei discernir qual o percurso real? Até certo ponto tenho noção da minha etapa. Depois, confiarei no meu instinto, perdido, pesquisando-te na cidade grande.
Saberei o caminho do regresso? Dizem que regressar é fácil quando não se parte. Sei que farei o caminho do retorno mas ficarei a levitar na viagem, até que a cidade real me acorde com os olhos. Mas agora ainda viajo. Shiu! Não me acordem.

Nem sequer espreitem até onde me leva este meu vagabundear.